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EXPEDIÇÃO PICO SEM NOME - 2008 - 2009

Texto: Márcio Bortolusso / Fotos: Fernanda Lupo e Márcio Bortolusso

Subi o Pico dos Marins (2.421m) pela primeira vez pelas bandas de 1990, época em que os montanhistas eram recepcionados pelos queridos Seu Afonso e Dona Maria, hospitaleiro casal inesquecível aos que freqüentam a região desde outrora. Foi amor repentino. Junto com Mambucaba, pacata vila do litoral sul-fluminense onde cresci, sem dúvida o Marins é um dos lugares na terra aonde me sinto em casa.

Situa-se na divisa dos estados de São Paulo e Minas Gerais, em plena Serra da Mantiqueira, uma das mais altas cadeias de montanhas do país. Trata-se de uma das áreas mais duras para se escalar no Brasil, comparada apenas com a Serra dos Órgãos (RJ) e o Maciço do Marumbi (PR), pelo difícil acesso, grandiosidade de suas paredes rochosas e clima severo. Segundo especialistas, a região que vai do Maciço dos Marins até o Pico das Agulhas Negras, junto com o Morro da Igreja (SC), possui as mais baixas temperaturas nacionais (com média anual menor que a da catarinense São Joaquim, “a cidade mais fria do Brasil”), chegando facilmente à 0ºC no verão e à –10ºC no inverno (em 1985 registrou-se –17ºC, na 3º maior nevasca do Brasil). Sem falar em tempestades com ventos que chegam à 100 km/h!

O conjunto principal do Maciço dos Marins é formado por três pontiagudos cumes de pedra com mais de 2 mil metros de altitude e centenas de metros de paredes rochosas, sendo que apenas o Pico dos Marins pode ser acessado pelos montanhistas, após horas de exigente escalaminhada por sua face menos vertical. Um profundo vale cortado por cânions de pedra e vegetação cerrada separa este cume de seus vizinhos, o Central (também chamado por outros nomes divergentes) e o mais isolado de todos, o Pico Sem Nome (apelidado como os mais antigos o chamavam).

Após dezenas de subidas ao Pico e algumas travessias até o vizinho Itaguaré, não demorou para que eu empreendesse algumas explorações pela região, por vezes em solitário, percorrendo cristas e cânions inexplorados durante dias ou realizando as primeiras escaladas do Maciço. Em quase 20 anos de andanças pela área, lembranças se misturam entre momentos de terror e êxtase, em fracassos e alguns dos melhores dias de minha vida.

Foi em 2003 que eu e o camarada Chander Cristian abrimos a primeira rota de escalada da região, inaugurando o que acreditamos ser uma das mais promissoras áreas para a prática de escalada clássica do Brasil. Após 14 horas transportando 140 quilos de equipos, levamos 10 dias para culminar sob a imponente Face Leste do pico principal, dormindo pendurados por 7 dias, sofrendo com temperaturas negativas que congelavam o orvalho noturno, com chuvas e ventos fortes, dores nas mãos destruídas pelas fendas e martelos, fome, sede, solidão e sob risco constante.

Outras baladas saíram de lá para cá e alguns projetos ainda estão para serem finalizados. No entanto, dentre vários planos futuros, uma linha imaginária em especial sempre me levava a escalar mentalmente por uma das faces rochosas mais impressionantes de todo o maciço. Um sonho que eu sabia que cedo ou tarde eu iria pôr em prática.

Ao lado de minha esposa, a fotógrafa e montanhista Fernanda Lupo (www.fernandalupo.com.br), foi assim que comecei 2009 de uma forma um tanto especial. Inconformado com a idéia de comemorar o Natal e o reveillon de forma alienada, com uma farta ceia familiar ou pulando ondas no litoral, a idéia inicial era a de abrir mão dos presentes e iniciar o ano na montanha, fazendo o que mais gosto e ao lado da pessoa amada. A idéia fermentou e logo estávamos tirando um velho projeto da gaveta. Decidimos encarar um desafio nunca antes realizado, o meu antigo sonho de escalar a impressionante Face Oeste do Pico Sem Nome, um dos maiores desafios de todo o Maciço dos Marins, uma belíssima parede com uns 400 a 500 metros, isolada por encostas bastante íngremes e uma densa mata.

Planejamos a logística desta escalada com base nas experiências anteriores no Maciço. No entanto, arriscamos escalar no verão, época chuvosa que torna este tipo de escalada bastante complicada, ainda mais nos Marins. Mas a idéia principal era estar na montanha, com cume ou não, molhado ou com frio, iniciar 2009 entre cordas e mosquetões.

A primeira etapa da expedição durou 11 árduos dias, de 23 de dezembro à 02 de janeiro, tempo suficiente para perdermos 3 quilos cada um. Somente para alcançar a base da montanha, abrindo caminho através de uma densa floresta que se estende por um profundo vale de encostas íngremes, foram mais de 40 horas, às vezes debaixo de muita chuva, transportando como mulas de carga cerca de 110 quilos de equipamentos e mantimentos.

Já ao final do primeiro dia de aproximação, após 13 horas navegando por um labirinto de espinhos e capim cortante que esconde inúmeras gretas perigosas, minhas mãos, braços e pernas apresentavam centenas de cortes e escoriações. Sem falar no feio talho na canela, uma ricocheteada de um facão. Após dias de exposta escalaminhada pela mata, a Fernanda mais parecia uma dálmata, pela quantidade de hematomas em seus braços e pernas. Sem falar na queimadura de taturana em seu braço, na picada de aranha que levei (que ainda preocupa pela dor incessante e pela má cicatrização), nos tombos, na quantidade de insetos dentro da barraca, na tromba d’água que complicou a travessia do rio, etc.

Ao contrário do que normalmente fazemos durante a ascensão de um cume virgem, desta vez evitamos as rotas mais fáceis até o topo da montanha, por canaletas entupidas de mato ou por cristas mais positivas. Optamos por uma escalada mais complexa, extensa e vertical, provavelmente a maior linha de todo o Maciço. Afinal, não importava chegar ao cume, mas como chegar.

Fora os riscos inerentes deste tipo de escalada onde ninguém jamais passou – é preciso desviar com cuidado de perigosos blocos soltos (alguns do tamanho de geladeiras), não existem proteções pré-fixadas e croqui com infos sobre as dificuldades da rota ou quais equipos serão necessários – não tínhamos qualquer garantia de cume e as chuvas não davam trégua.

Para ter uma idéia das duras condições climáticas que enfrentamos, após semanas de fortes e ininterruptas chuvas, o município de Piquete - onde se localiza a montanha - entrou em estado de alerta devido à várias inundações e desmoronamentos que deixaram muitos desabrigados.

Mesmo chovendo praticamente todos os dias em que estivemos na montanha, escalamos bastante nas poucas brechas sem chuva, chegando inclusive a instalar um Acampamento Avançado a mais de 100 metros do solo no segundo dia de parede, na esperança de passarmos o reveillon pendurados em nosso portaledge (maca-cama feita de tubos, lona e fitas).

Para ganhar tempo, cheguei a fixar proteções a 20 metros umas das outras, correndo o risco de sofrer sérias quedas de até 50 metros, mas rendendo a escalada antes de uma nova tromba d’água.

Uma das poucas escaladoras brasileiras a se dedicar a abrir vias de escalada, para a minha sorte Fernanda prefere explorar ao invés de "repetir" uma rota, realizando o árduo trabalho de fixar proteções na rocha à base de marretadas, sem direito à vaidades (dias sem banho ou cosméticos) e forçando o seu limite técnico, físico e psicológico. O que me deixa ainda mais orgulhoso e preocupado é que além dela revezar a dianteira da escalada comigo (correndo maiores riscos), a menina está pegando gosto pela emoção de dar grandes esticões de corda entre as proteções. Durante a escalada do Pico Sem Nome, ousadamente chegou a fixar chapeletas com distância de até 12 metros, que poderiam gerar quedas de até 30 metros caso ela cometesse algum erro. Determinada a me matar do coração, após alguns metros de corda esticada, quase voou ao escorregar e, segundos depois, arremessou para baixo uma grande agarra que quebrou em sua mão - cena filmada por uma câmera presa em meu capacete.

Poucas horas antes de encerrar o dia 31, já com o portaledge armado, fomos surpreendidos por um temporal tão forte que achamos que fosse granizo. Pra piorar, fomos pegos em cheio por uma perigosa tempestade de raios, que estouravam sob nossas cabeças. Cientes do risco que corríamos e do quanto deveríamos ser rápidos (centenas são as fatalidades nas montanhas por conta de descargas elétricas), abandonamos a parede o mais rápido que foi possível - levamos uma hora para descer, sob frio e fome, com cargueiras pesadas e tendo que abandonar muito equipo na parede (que só resgatamos no outro dia). Após o susto, surpresa ao descobrir que a mini-câmera estava ligada, com registros tensos de nossa roubada.

Já no seguro e elevado Acampamento Base, instalado a uns 2.000m de altitude na base da parede, curtimos um dos melhores reveillons de nossas vidas. Uma tímida chuva de fogos a dezenas de quilômetros nos confirmou que realmente estávamos em 2009. Ao sabor de um mini champagne, de duas castanhas e duas pesadas nozes, comemoramos o fato de estarmos juntos em um lugar tão incrível, vivendo no limite, fazendo o que mais gostamos, ao lado da pessoa amada e valorizando as coisas mais simples da vida.

Não poderia terminar este texto sem um merecido agradecimento à nossa prestativa equipe de apoio. Prefiro trabalhar com a "auto-suficiência", evitando contar com a boa vontade dos grupos de salvamento locais em caso de emergência, que na grande maioria das vezes não possui experiência e equipamentos para atuar em montanhismo (quem não se lembra do escoteiro Marco Aurélio, desaparecido há anos na região e que mobilizou, de forma questionável e ineficaz, uma das maiores tentativas de busca e resgate já empreendidas no Brasil em ambiente de montanha). Sinceramente, prefiro o risco de não conseguir voltar, do que o desperdício de recursos públicos e a exposição desnecessária de vidas alheias ao perigo, mas isto é uma lonnnga história... Diante deste raciocínio e dos riscos de nossa empreitada, desta vez optamos pelo suporte de uma equipe formada por montanhistas experientes. No Acampamento Base Marins local de nossa partida , contamos com o apoio do guia Milton Gouveia e do escalador Diego Moreira, do CEMAR (www.grupocemar.blogspot.com), sempre atentos aos rádios e que nos ajudaram na difícil aproximação e transporte de equipos. Sem esquecer do apoio logístico do Gustavo Vidal (www.tribodatrilha.com.br). Além dos camaradas, contávamos também com um kit de sobrevivência e um rastreador satelital SPOT (www.findmespot.com.br), capaz de enviar mensagens com nossa exata localização para nosso apoio.

Este tipo de expedição pode levar desde uma semana até exigir várias investidas para ser finalizada - já precisei de até 6 anos para terminar algumas escaladas. Prontos para retornar para a montanha, estamos aguardando apenas uma janela de bom tempo para finalizarmos a escalada. E em breve, divulgaremos aqui no WEBVENTURE o final desta história, a segunda etapa de nossa expedição ao Pico Sem Nome.

Fundamental para o sucesso de nossos trabalhos, gratidão à norte-americana W. L. GORE®, líder mundial em tecnologias para Atividades ao Ar Livre e detentora das renomadas marcas WINDSTOPPER® e GORE-TEX®.

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